segunda-feira, 6 de julho de 2015



Analisando com atenção algumas situações vividas, penso que sou alienígena!
Em conversa com alguém que conheci recentemente, chegamos fatalmente ao tema central das conversas quebra gelo: O que você gosta de fazer! A primeira coisa que digo é ler, hobbie que acabou virando ofício, sou leitora contumaz desde que me entendo por alfabetizada. Houve então uma explosão de entusiasmo da parte do interlocutor, que também se disse apaixonado por livros, o que seria muito bom se não houvesse um abismo de no mínimo 30 anos entre nossos gostos literários, enquanto ele pensava que José de Alencar era o vice presidente vitimado pelo câncer, eu não tinha a menor ideia se a culpa era das estrelas, dos cometas, asteroides ou qualquer outro corpo celeste, enquanto ele achava que Iracema era um fenômeno em que os peixes nadam contra a correnteza eu nem desconfiava pra que lado ficava A cabana.
Sim, senhores, estou totalmente ilhada nos séculos passados enquanto fervilham e borbulham essas novidades literárias, não me rendi, não me interessei e hoje em uma roda de conversa sobre o tema sou um verdadeiro E.T. Não me animaram as historias vampirescas nem os pseudo eróticos água com açúcar, a linha auto ajuda então, sem comentário, nem toda minha curiosidade feminina me impeliu a descobrir o tal do Segredo.
Acho muito válido essa popularização da literatura, defendo que qualquer estilo é benéfico, mas não sei, sinto falta de enredos mais densos, vocabulários mais elaborados, mais genialidade, sinto falta da pegada de Jorge Amado, do humor inteligente de Luis Fernando Veríssimo, da profundidade de Allan Poe, da genialidade de Henry Muller. Nas poucas vezes que me arrisquei nesse modismo literário achei tudo muito igual, mais do mesmo, salvo raríssimas exceções, foi como tomar sopa de papelão depois de comer uma feijoada completa.
Mas no final de tudo, o intercambio foi valido, pois é sempre melhor  ver melhor o Lado Bom da Vida, embora de vez em quando eu tenha vontade de descobrir As vantagens de ser Invisível, assim como meu novo amigo que agora sabe a relação entre Crime e Castigo e nunca mais vai errar O caminho da Felicidade.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Pequeno retrato do mito da democracia racial no brasil


Eu não sou racista, até tenho amigos negros.
Desde que eles não sejam mais escolarizados, que não tenham um emprego melhor, que não representem nenhum tipo de ameaça. Desde que não sejam mais autônomos, independentes, inteligentes ou cultos, que não falem outro idioma, que não sejam profissionais reconhecidos e competentes, desde que não entendam de assuntos que eu desconheço, que não discorram desenroladamente sobre qualquer assunto, que não tenham casa própria ou independência financeira antes de mim, desde que não tenham lido em um mês mais livros do que um brasileiro comum lê na vida, desde que eles não se metam e entender de arte, cinema, gastronomia e musica que não seja axé, funk e pagode.
Eu até tenho amigos negros, desde que eles não corrijam meus erros ortográficos e de dicção, que seus cabelos pixaim não chamem mais atenção que minhas lisas madeixas, desde que não atraiam mais atenção com essa história de conteúdo.
Eu até tenho amigos negros, desde que eles precisem daquelas roupas que eu não uso mais ou que não me caiu muito bem, desde que eu possa recomendá-los aos meus outros amigos para que eles façam serviços domésticos pra ajudar no fraco orçamento familiar.
Não me incomodo em conviver com pessoas negras, desde que elas estejam em seus devidos lugares, ou seja, abaixo do meu.
Aos que não se enquadram, eu faço meu papel e como bom amigo, os advirto de que eles estão falando demais, que isso é pedantismo e exibicionismo, que as pessoas não gostam de gente assim que eles devem guardar para si o que sabem, que calados serão melhor aceitos em qualquer roda onde impere o senso comum, que esse negócio de dizer o que pensa, mostrar o que sabe é desnecessário, bom mesmo é ficar calado e deixar que eu fale.

Eu até tenho amigos negros, desde que me deixem falar por eles que meu pensamento sobreponha-se. Eu até tenho amigos negros, desde que eles continuem entrando pelo elevador de serviço e saindo pela porta dos fundos.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Sobre meninos e lobos




Desde sempre me senti mais atraída por homens mais velhos, vez ou outra uma pessoa jovem despertou meu interesse, mas certamente prefiro os lobos aos meninos.  A maturidade, as experiências de vida e de mundo, os valores, sei lá, tem algo que me cativa, vai ver é por que, como sempre digo, nasci na década errada.

Lógico que para toda regra há exceções, mas indubitavelmente um lobo já aprendeu a valorizar uma mulher pelo conteúdo, já aprendeu algumas técnicas para domar o temperamento tantas vezes hostil das fêmeas, já sabe a importância de uma mulher em sua vida, já provou muitas e agora aprendeu degustar. O lobo sabe ser companheiro sem sufocar e já entendeu que o que o que “prende” é o cuidado. Ele foi de uma geração que aprendeu conversar e interagir, respeitar, ser  educado e gentil, os lobos geralmente são uns cavalheiros. A experiência sensorial é mais aguçada, sabem que a mulher não vai evaporar, portanto não é preciso ter a pressa dos meninos.

Os lobos observam suas “presas”, entendem seus hábitos, memorizam seus caminhos e só após conhecer em detalhes o objeto dos seus desejos, partem para o ataque, eles sabem cortejar.

Os meninos são atirados, apressados, imediatistas. Quanto mais, melhor, vamos rápido pois “a fila precisa andar”, na maioria das vezes, nos meninos não se pode confiar, são egocêntricos e adoram ostentar suas conquistas, fatalmente as mulheres acabam sendo apenas mais uma. A maioria dos meninos  têm a profundidade de um pires tornando assim impossível a construção de uma conversa produtiva e os transformando em pura energia sexual, alguns meninos são vazios e eu não tenho paciência com gente sem conteúdo.

Nos lobos se pode confiar, casos contrários são a exceção da regra, eles já superaram a necessidade de ostentar, não têm mais tempo pra desperdiçar, se um lobo te cobiça é porque te quer e se te tiver vai saber valorizar.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Amor Perfeito


Eu quero um amor pra vida inteira que dure enquanto for bom, que goste de dormir de conchinha, mas que no dia seguinte pegue suas coisas e vá pra sua casa, sem neuras. Que entenda minha necessidade de, as vezes (ou muitas vezes) querer ficar sozinha, assim, sem nenhum motivo mesmo, que não queira DRs nem explicações toda vez que isso ocorrer. Quero um amor que entenda que tenho gavetas dentro de mim que não gosto que ninguém mexa, remexa, futuque, que tem coisas sobre as quais não gosto de falar e outras sobre as quais não vou falar nunca, que se conforme que tenho segredos, que não sou um livro aberto e que existem coisas sobre mim que ninguém, nem mesmo ele, vai saber.
Quero um amor que entenda que sou meio felina, as vezes me achego, arranhando de mansinho, querendo dengo, mas que também sumo dentro de mim e levo um tempo para voltar, que não me cobre explicações cada vez que meu humor mude ou que eu transite entre a euforia e o mais sepulcral silencio, que entenda que meus problemas nem sempre tem a ver com a ele, quero um amor que não peça definições de sentimentos que nem eu sei.
Quero um amor pra discutir sobre arte, cinema, literatura, para segurar a barra e amarrar as pontas, que saiba me ouvir falar e, sobretudo que saiba me ouvir calar, que perceba que odeio pedir e que sim, às vezes quero que me adivinhe, me surpreenda, se antecipe àqueles pequeninos atos que fazem a maior diferença.

Quero um amor que entenda que não preciso de gaiolas, que quando resolvo ficar, eu fico, e por vontade. Que saiba que quando amo é por inteiro e sem reservas, quero um amor que certamente vai permanecer no campo das inexistências.

domingo, 7 de julho de 2013

A eventual cegueira do amor.



A eventual cegueira do amor.


As vezes penso que essa coisa de “digo o penso”, “esse é meu jeito e não vou mudar”, seja apenas uma desculpa para poder magoar as pessoas. A verdade dói e nem sempre é a melhor solução, principalmente quando se trata de relacionamentos amorosos. Tá certo que a família do seu amor é um saco, seu cunhado é um pentelho e você não vai nem um pouco com a cara daquele melhor amigo, porém, antes de ter um ataque de sinceridade e sair dizendo exatamente tudo o que pensa a respeito destas pessoas é bom lembrar que foram elas quem amaram e apoiaram seu parceiro desde muito antes de você estar ali, foram eles quem seguraram as barras, deram apoio e força, compartilharam os piores e melhores momentos.
Amar implica, muitas vezes fechar os olhos para algumas coisas que nos incomodam mas que são essenciais na vida do outro, suportar situações para nós desagradáveis somente para poder desfrutar de mais um momento lado a lado, nesses casos vale disfarçar o desagrado ou omitir a opinião desfavorável, vale a pena esperar o momento certo para conversar a respeito sem agressões ou cobranças.
Recentemente ouvi que isso é agir com falsidade e hipocrisia, eu acho que é apenas vontade de preservar o outro ou o momento que se está vivendo, costumo dizer que de amigo, cabelo e parente só quem pode falar mal é a gente. Mesmo sabendo que uma pessoa não é a mais cheia de qualidades do mundo, ninguém gosta de ouvir comentários maldosos a respeito dela se a ama ou lhe tem amizade.
Claro que chega uma hora em que o sapo simplesmente não desce mais, esse é o momento para uma conversa civilizada, levando sempre em consideração que o amigo que você detesta pode ser a única pessoa a quem seu amor pode recorrer sem pestanejar, que aquelas festas de família que você acha tediosas marcaram a infância dele, que cada um tem seu jeito e suas peculiaridades, que a grama do vizinho nem sempre é mais verde e que sinceridade demais mais atrapalha que ajuda.


Às vezes, para ser feliz é preciso agir como aqueles bonequinhos celebres, que não falam, não ouvem nem enxergam. Amar é, de vez em quando fechar os olhos e engolir em seco. 

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Destinos


A mulher estava ali fazia certo tempo. Sentada, imóvel, introspecta, mergulhada em seus pensamentos, sabe-se lá Deus (ou o diabo, que é quem mais entende de pensamento de mulher) quais.

Todos os passantes espichavam o olhar para aquela figura no mínimo, exótica, ali parada, como se fosse uma palmeira imperial. Digo palmeira, pois era bem o que ela me lembrava. Nunca tinha visto uma mulher tão bonita, tão altiva. Perturbadoramente bonita e quieta. Olhava para tudo, mas era como se não olhasse pra nada, era um olhar penetrante e impenetrável.

Depois de horas de angustiante quietude resolvo me aproximar, talvez ela não falasse português ou nenhum outro idioma, afinal, não é de estranhar? Uma mulher calada por tanto tempo?

Meio cabreiro me aproximo:

- Posso ajudá-la, senhora?

- Senhorita.

- Como queira.

De repente ela me olha com a expressão mais esquisita que já vi na vida, a mulher parecia querer me atravessar e ler meus pensamentos.

- O senhor acredita em destino?

- Como?

- Essa coisa de predestinação, nada é por acaso, tudo está escrito, enfim.

- Que diacho de pergunta mais estranha, aliás, toda essa historia é estranha. Primeiro a senhora, digo, senhorita, fica aí parada, caladona, com cara daquele bicho do Egito que devorava os viajantes...

- Esfinge.

- O quê?

- Esfinge, é o nome do ser que devorava os viajantes que não decifrassem seus enigmas.

- Ah! Então, primeiro a senhorita fica aí com cara de quem vai devorar o primeiro que atravesse seu caminho, depois me vem com uma pergunta estranha dessa, assim à queima roupa.

- Mas o senhor nunca se preocupou em saber se a gente já nasce com um destino todo prontinho, só esperando pela gente pra poder acontecer?

- Eu acho muito besta isso de gente vir ao mundo com o destino escrito na testa.

- Nas mãos.

- Como?

- Nas mãos, o destino da pessoa está escrito nas mãos.

- Vixe, agora que complicou. Então quem nasce sem as mãos, nasce também sem destino? Era melhor que fosse na testa, pelo menos nunca vi ninguém sem testa, já sem mãos...

- Engraçado, nunca tinha pensado nisso. Mas o senhor não acha curioso o fato de eu estar aqui há tanto tempo e só o senhor ter vindo falar comigo?

- Peraê, eu vim porque quis.

- Mas o que fez o senhor querer?

Pensei em lhe dizer a verdade, que foi aquele porte de palmeira, o corpo de parar de comboio de caminhão, os seios, as coxas, mas nessas horas é melhor demonstrar cavalheirismo.

- Eu pensei que estivesse perdida, sei lá, ficou aí à toa.

- Nada disso, foi coisa do destino, o senhor não vê?

Desisti de argumentar e confesso que já estava meio mexido com aquele papo.

A moça respirou fundo e continuou:

- Olhe, hoje aconteceu algo muito incomum, eu me atrasei e perdi o ônibus que tomo todos os dias, então resolvi tomar um outro que me deixaria perto do trabalho, me confundi, perdi o ponto e acabei vindo parar aqui.

- Pois bem, até aí nada de estranho. Quem nunca tomou o ônibus errado? Era só voltar e continuar seu caminho.

- Pois é, seria o óbvio, mas então eu me perguntei como seria se eu não chegasse ao trabalho hoje, na mesma hora de todos os dias depois de dez anos.

- Minha senhora, perdão, senhorita, no mínimo a senhorita receberá um baita esculacho do seu patrão.

- O senhor não está entendendo, tudo isso me fez pensar que o destino, o meu destino, ia dar uma reviravolta. Não vê? Não estamos aqui, nesse momento, conversando por acaso. O senhor estava no meu destino e eu no seu.

Confesso que me senti bem lisonjeado, afinal nunca havia estado no destino de uma mulher daquelas.

- Agora já sei o que me estava reservado pelo destino, pelo menos para hoje. Bem aí vem outro ônibus.

- Espera, então é assim? Eu entro no seu destino por uma porta e a senhorita sai por outra? Ou melhor, entra pela porta de um ônibus?

- Então, assim é o destino. Ele já vem pronto, mas a gente nunca sabe o que vai acontecer. O que a gente chama de vida é apenas o desenrolar do destino, a sucessão de seus acontecimentos.

- Se é assim, fica sendo. Quem sou eu pra contrariar né? Em todo caso, foi um prazer senhorita...

- Rafaela.

- Paulo, no seu destino e ao seu dispor.

Aqueles acontecimentos ficaram a martelar em minha cabeça, mas logo depois a mesa de bilhar roubou minha concentração e foi ali que me abordou esbaforido o moleque que entrega jornais com uma noticia ainda mais quente que as dos periódicos matutinos. Logo ali, na rua de baixo, um ônibus despencou da ladeira, bateu, capotou , levou tudo que encontrou pela frente, um miserê. Porém, o mais impressionante é que só houve uma vitima fatal, uma mulher, identificada como Rafaela da Silva.

Fiquei atônito, coitada, uma mulher tão bonita. Mas que destino!

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Mais ou menos uma fábula



Assim não é possível, todo dia isso. Será que ele não toma jeito? Resmungava Leon a caminho da casa de Rafael. Olhava para o relógio ansioso e aumentava o passo, odiava chegar atrasado, era pontual como um relógio suíço. Já o Rafael, seu melhor amigo, era totalmente o oposto. O que tinha Leon de responsável, preocupado em cumprir todas as obrigações e ser politicamente correto, tinha Rafael de descontraído, relaxado e bom vivant.

Leon para em frente a casinha amarela de portas e janelas vermelhas e bate uma, duas, três vezes. Nada. Põe se a esmurrar a porta com mais vigor:

- Rafaeeeeeeeeeeeeel, Rafaeeeeeeeeeeeeeeeel.

Ouve passos lentos, parece ouvir os bocejos do amigo, vindo com toda aquela paciência do mundo. A porta se abre e Rafael aparece esfregando os olhos e ainda enfiando umas coisas na mochila.

- O Que foi Leon? A floresta está pegando fogo?

- O que foi? Você me pergunta o que foi? Já estamos completamente atrasados e você ainda nem acordou direito! Aposto como ficou a noite inteira tocando esse bendito violão não foi?

- Taí, já pensou em abrir um negócio de clarividência? Adivinhou!

- Vê se para de palhaçada e vamos embora.

Finalmente Leon conseguiu arrastar Rafael para fora de casa, desde o primário era aquela mesma historia, o Leon todos os dias, precisava passar na casa do amigo para chamá-lo para aula. Talvez fosse a hora de levarem um papo sério, afinal já não eram mais crianças. Rafael ia chutando pedrinhas distraidamente enquanto Leon olhava para os sapatos, sem saber como puxar aquele assunto. Rafael resolve começar uma conversa:

- Que foi Leo? Está mais carrancudo que sempre.

-Sabe, acho que a gente precisa levar um papo...

- Ihhh! Já vi que lá vem papo cabeça.

- É sobre isso que quero falar, cara, você não leva nada a sério, não se importa com nada, parece que vive no mundo da lua, não ta nem aí para a escola. Todo ano faz um monte de recuperações e nem sei como consegue passar de ano. Já está na hora de você começar pensar no futuro, sobre qual faculdade vai fazer. Você fica aí ligado nessa historia de arte, de música, isso não dá futuro cara.

Rafael ouvia meio que distraído, não era a primeira vez que ouvia aquele discurso, todos os professores já haviam lhe dito aquilo desde a primeira série.

- Sabe Leon, vocês formigas são muito estressadas. Saca só isso.

Leon tirou o violão da mochila e começou cantarolar:

Don’t worry, about a thing, cause every litlle things, gonna be all right.

- E vocês, cigarras, não levam nada a sério. Bom, pelo menos inglês você está estudando.

Os dois não puderam evitar a gargalhada. Nunca houve entre duas pessoas tantas diferenças e uma amizade tão sincera.

Assim passou o tempo e os dois seguiam com seus projetos. Leon ansioso, preocupado com o futuro, os estudos, a desejada carreira de advogado e Rafael, cada vez mais no mundo da lua, agarrado ao seu inseparável violão e sua vasta coleção musical.

Chegou o ultimo ano do ensino médio, toda a escola estava em alvoroço, alunos preocupados com as provas finais, a formatura, o vestibular. Todos, exceto um, Rafael, que só se preocupava em dar os últimos toques na banda para a apresentação da formatura.

Ao contrario do amigo, Leon estava em vias de enlouquecer, estudava oito horas por dias e ia prestar vestibular em três faculdades. Vivia zanzando para lá e para cá com pilhas de livros e nunca tinha tempo pra nada. Até as conversas com Rafael tornaram-se mais espaçadas. Mas os amigos se compreendiam, um entendia e respeitava os desejos do outro e, mesmo sendo tão contrários, apoiavam-se sem reservas.

Leon, como já era esperado, foi aprovado na melhor faculdade de direito da região. Ninguém duvidava que ele seria o melhor. A família, orgulhosíssima, fez questão de preparar uma baita festa para todos os seus amigos, nunca se viu uma despedida tão animada. Várias mães entusiasmadas comentavam o bom desempenho de seus filhos e faziam as previsões mais mirabolantes, que só as mães podem conceber para o futuro de um filho.

Lá pelas tantas, atrasado como sempre, chega Rafael com seu surrado violão embaixo do braço. A mãe de Leon torce o nariz, nuca foi com a cara daquele menino aluado e cava graças aos céus por ele não ter corrompido seu promissor filhinho.

Rafael canta uma musica que compôs para o amigo. Se despedem com a certeza de que não voltariam a se ver tão cedo e que, talvez nunca mais seriam tão próximos.

Os anos se passaram, a comunicação entre os amigos foi diminuindo até quase deixar de existir. Leon estava cada dia mais ocupado, trabalhando e estudando mais e mais. Quase não lhe sobrava tempo de enviar um simples e mail. A vida na cidade grande, os compromisso de trabalho lhe consumiam todo o tempo mas, ele estava feliz, afinal este é o destino de todas as formigas.

Certo dia, após chegar de mais uma exaustiva jornada de trabalho, Leon se levanta contrariado para atender ao interfone. A voz do porteiro soa estridente ao seu ouvido:

- Doutor, tem uma pessoa aqui que diz ser seu amigo, sei não, mas me parece difícil que isso seja verdade...

- Qual é o nome da pessoa?

- Ele diz que é Rafael.

- Rafael? Pode mandar subir.

- Tem certeza? É que ele me parece meio, meio...

- Meio vagabundo?

- Sim senhor.

Leon sorriu ao lembrar do jeito despojado, meio hippie do amigo, pelo jeito ele não havia mudado nada, muito menos tomado um rumo na vida.

- Pode mandar subir.

Os amigos se abraçaram com entusiasmo, mesmo estando Rafael encharcado pela chuva que desabava lá fora.

Leon olhou para a pouca bagagem e o velho violão do amigo encostado na parede.

- Está de passagem, ou pretende ficar?

- Nada, volto amanhã, desculpe vir sem avisar, eu não gosto de hotéis.

- Pode ficar o tempo que precisar, só não garanto te fazer companhia, tenho trabalhado muito.

- Percebe-se, baita casarão heim mano? Tem placas para eu não me perder?

Caíram na gargalhada, como nos velhos tempos.

- Você não muda Rafa, sempre palhaço.

- Mas todos se divertiam com minhas palhaçadas não era?

- Cara, até hoje lembro daquele dia que você colocou uma perereca na bolsa da professora.

- É, eu fui expulso por uma semana...

- Mas valeu por cada risada.

- Bom, se você não se importa, preciso de uma roupa seca, não posso pegar um resfriado e destruir minha bela voz.

Leon indicou o caminho e foi ver o que tinha pra comer, raramente fazia uma refeição em casa, ganhava tempo comendo no trabalho. Enquanto improvisava um jantar, não pôde deixar de se preocupar com o amigo, pela sua aparência, ele continuava da mesma maneira, levando a mesma vida de anos atrás, pensou se não seria a hora de terem uma nova conversa. Respeitava a postura do amigo, mas temia pelo seu futuro, Rafa não era mais um garoto, agora era um homem feito.

Durante o jantar quase não falaram, Rafael como sempre, puxou conversa:

- Puxa Leo, será que você não perde essa cara emburrada?

- É que eu queria te falar umas coisas.

- Papo cabeça, adivinhei?

- Rafa, é sério. Olha pra você cara, não mudou nada.

- Ué, você também não mudou nada e eu não estou preocupado por isso.

- É diferente cara. Você precisa se preocupar com seu futuro, não é mais nenhum garoto.

Rafael apenas balançou a cabeça distraidamente, como fizera todas as vezes que o amigo tentou aquela conversa.

- Bom, o que você veio fazer por aqui, garanto que não foi provar minha comida.

- Que é muito ruim por sinal.

- Isso eu admito que você sempre fez bem Rafa, um cozinheiro de mão cheia. Tai, deveria abrir um restaurante.

- Eu heim! Respondendo a sua pergunta, eu tive que vir aqui ver um lance muito sério, é que uma gravadora me contratou meu amigo, acabo de assinar o contrato. Eles querem gravar todas as minhas composições, isso deve resolver suas preocupações a respeito do meu futuro, tenho emprego por pelo menos cinco anos e acabo de receber uma bolada pela assinatura do contrato.

- Nossa cara, que noticia fantástica. Quem diria que esse violão velho ia ser sua mina de ouro heim!

- Pois é, agora vou voltar pra casa e abrir uma escola de artes. Existem coisas que não se aprendem apenas em uma faculdade e todos os caminhos podem levar ao sucesso, desde que se faça o que gosta e que se proponha a fazer com vontade.

- Confesso que estou impressionado. Só me resta parabenizá-lo e dizer que me sinto aliviado, já estava convicto de que ia ter que te sustentar e, você em troca, todos os dias me pagaria com uma musica.

- Agora você é quem vai pagar para ouvir minhas músicas. Por falar em musica, que tal relembrarmos os velhos tempos?

Rafael levantou-se, apanhou seu surrado violão e começou cantar baixinho:

Don’t worry, about a thing, cause every little things, gona be all right…

Passaram o resto da noite relembrando os feitos da infância e da adolescência, felizes por sempre terem tido certeza dos seus objetivos e por tê-los alcançado. Naquela noite Leon não se preocupou em dormir cedo e Rafael no outro dia, foi quem precisou acordá-lo para ir trabalhar.