quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Amor Gourmet

Penso que os homens que cozinham devem ser perfeitos amantes. Coisa minha, achismo sem comprovação empírica, cisma, talvez fetiche.
Ambas as artes, cozinhar e amar, exigem de quem as pratica muita sensibilidade, dedicação, contínuas pesquisas e experimentos. Há que se descobrir sabores, inventar misturas, saber a dose certa de cada ingrediente. No amor e na culinária, tudo tem sua medida certa e, se porventura algum equívoco acontece, pode-se desandar toda a receita.
Basta imaginar um homem preparando uma receita e fica fácil concluir que aquele ritual se repete em todas as coisas que ele faz, inclusive quando faz amor. A escolha dos ingredientes sugere que ele é criterioso, as mãos hábeis no manejo dos utensílios, são leves ou firmes a depender da necessidade. Ele escolhe seus apetrechos como quem escolhe os carinhos e veredas do corpo da amada. Se for preciso amacia, espera apurar, com a paciência de quem sabe que todo prato tem seu tempo de preparo. O bom amante, assim como o bom cozinheiro, sabe a hora do fogo brando, do banho maria e a hora de riscar o fósforo e deixar flambar, consumir-se em chamas. Ele não se contenta em fazer feijão com arroz quando pode produzir um banquete para cem talheres.
Um bom cozinheiro não come, ele degusta, saboreia, conhece os acompanhamentos perfeitos para cada prato e cada ocasião, assim como o bom amante é sensível aos desejos de cada fêmea. Ambos precisar saber quando utilizar um ingrediente mais forte, mais picante, para realçar ou valorizar o resultado final.
O cozinheiro orgulha-se da receita finalizada, o amante, da mulher satisfeita.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Ana Luz



 
Ana para diante da porta, confere o numero, alisa a roupa no corpo, ajeita os cabelos, respira fundo. Aperta o botão da campanhia. Espera, aperta novamente, no exato momento em que a porta se abre. O homem a olha de baixo para cima, mede cada centímetro do seu corpo, um esboço de riso risca sua face quando encontra a de Ana.
_Parece que dessa vez acertaram! Vamos, vai ficar parada aí?
O apartamento estava imundo, um cheiro nauseante de cigarros e bebida impregnava o ambiente, roupas jogada, garrafas vazias, revistas pornográficas compunham a decoração do lugar. O morador estava visivelmente bêbado ou drogado ou os dois. A voz era quase um grunhido e olhar guloso parecia grudado em Ana. Ele fedia tanto quanto o apartamento.
_Posso ir ao banheiro? Perguntou fingindo indiferença. Ela precisava agir com profissionalismo. Não existiam clientes bons ou ruins, existiam apenas clientes.
_Se quiser... Mas só começo contar o tempo quando você voltar.
Ela deu de ombros e seguiu até o cômodo que ele indicara, tão imundo quanto o resto. Esfregou o espelho com as costas das mãos e viu seu reflexo embaçado. O rosto exageradamente maquiado, conselho de Madame Amélie, “os homens não pagam querida, para ver o mesmo que têm em casa”. A farta cabeleira crespa emoldurava o rosto de traços fortes, o nariz atrevido, os olhos cor de mel que se destacavam no negro rosto, olhos que lhe renderam o nome de batismo, Ana Luz.
Abre a pequena bolsa, retira um recipiente, limpa como pode uma parte do lavabo e prepara uma carreira de pó branco, fecha os olhos e aspira, a carreira desaparece por sua narina. Não se considera viciada, este é um recurso utilizado somente para os clientes que não se pode enfrentar de “cara limpa”. Olha-se mais uma vez, quase que instantaneamente os olhos se tornam opacos, as pupilas enormes. Não gosta daquela sensação de cair em um buraco negro. Apóia-se na borda do lavabo. Teletransporta-se. Aquelas lembranças sempre voltam quando está entrando no transe causado pela droga. Deixa-se levar, sabe que não adianta resistir. Ouve a voz da mãe, tão longe, sofrida. Ainda criança, a mãe tomando-lhe pela mão, dizendo-lhe para tomar aquela bebida horrível, insistindo por mais um gole, sentia arder a garganta e secar a boca. “Vamos, Ana, só mais um pouco”. O gosto era horrível, sentia queimar as entranhas, logo após, um torpor a lhe tomar o corpo, a cabeça girando, o chão fugindo. A voz de sua mãe agora era confusa, pedaços de frases, conseguia entender apenas uma parte que ela repetia sem parar: “você precisa ficar quieta” e “faça o que ele mandar”.
De repente era conduzida ao quartinho da mãe, havia alguém lá, os olhos embaçados não lhe permitiam distinguir. Por que suas pernas tão fora de controle e não lhe obedeciam? Força mais um pouco a visão, ele era tão familiar... Mas o cheiro, ah! Aquele cheiro conhecia.
_Benção, meu padrinho.
Balbucia com a voz enrolada. Ele a toma pela mão, a mãe sai. Estaria chorando? Está tudo tão confuso. “Faça o que ele mandar, Ana”, ouve mais uma vez.
Sentia-se ainda mais confusa, por que ele arrancava sua roupa? As mãos infantis tentavam contê-lo, em vão, ele era tão forte. Debatia-se, tentava gritar, a voz não saía, o corpo mole não obedecia. Ele beijava-lhe a boca, ela sentia enojada, o cheiro do fumo de mascar, quantas vezes ela o preparara. Viu-se atirada com fúria sobre a cama de varas, aquele peso sobre seu corpo, as pernas separadas à força e a dor lancinante que parecia rasgar-lhe em duas partes. Não lembra ao certo quanto tempo aquilo durou, pareceu “apagar” por alguns momentos. Novamente a voz da mãe. Estavam agora sozinhas na choupana miserável, a mãe insistia para se agachasse na bacia de flandres cheia de uma mistura de água e ervas. “Tinha que ser Ana, não fosse ele seria outro, tinha que ser. Não havia jeito, não temos pra onde ir, tinha que ser”, a mãe repetia mais para si mesma que para a filha. Ana voltava a sentir seu corpo, a voz da mãe era clara agora, sentia uma dor terrível entre as pernas, havia sangue.
Dormiu mal, ouvia o choro da mãe, a cabeça ainda girava, os sonhos foram confusos, “tinha que ser, tinha que ser”, a frase martelava em sua cabeça.
Acordou tarde, deu por falta da mãe, precisava de ajuda, sentiu muitas dores ao urinar, precisava da mãe, devia estar doente. Foi encontrá-la pendurada no velho cajueiro, um lençol amarrado ao pescoço. Morta.
_Vem ou não vem?
A voz do outro lado da porta a trouxe de volta. Olhou-se mais uma vez, conferiu os preservativos na bolsa. Saiu do banheiro.
Novamente sentiria aquele peso sobre seu corpo, aquele cheiro de fumo, aquela invasão entre as pernas. Agora ela sabia o que estava acontecendo e, mais uma vez, lembraria da voz da mãe e repetiria para si mesma, como havia feito durante todos aqueles anos: “Tinha que ser, tinha que ser”.



domingo, 12 de setembro de 2010

Mainha

Depois de tantos sóis, finalmente chegam ao papel os versos que inúmeras vezes morreram em minha garganta. Afrouxados os nós do apego, abrandado o choro insistente de lembrar de ti, esses versos agora brotam e escorregam dengosos, suaves e macios, como você. Irrompem dos soluços para falar de ti, mainha, de minhas saudades e de meu querer bem.
Hoje já consigo falar teu nome, evocar tua risada boa e apagar aquela imagem triste dos nossos últimos dias. Trago a lembrança tua, logo de manhã cedo desperta, dizendo que “faz mal deixar o sol passar sobre nossa cabeça com a gente ainda dormindo”, coisa tua, dos teus dizeres e superstições.
Agora te entendo tão bem, as chatices, as preocupações, o teu jeito próprio de amar e de ser carinhosa. Como você soube ser mãe! Com que bravura desempenhou o duplo papel, pai e mãe. Tanta coisa tua que demorou a fazer sentido para mim. Sei que quando dizia “como depois”, na verdade não comia. O pão era pouco e muitos os filhos. Sei que chorava escondido, mas, mesmo em tempos difíceis, não te falhava o sorriso.
Lembro de você desesperada, a correr o Paraguaçu, com a vara de goiabeira em riste, em busca dessa sua ovelha que todos os dias se desgarrava e, quando finalmente me encontrava, em banhos de rio ou outras aprontações junto com os moleques, dava um suspiro de alivio por me constatar viva, o que é claro, não me livrava dos açoites.
Era grande o teu medo que eu me perdesse, era grande o teu medo de que qualquer uma das tuas crias se perdesse, por isso sempre ia nos buscar, mesmo quando dizia lavar as mãos e “entregar pra Deus”. Sei que nos meus momentos de rebeldia, se aproximava de minha cama e, enquanto eu fingia dormir, colocava a mão sobre minha cabeça e orava por mim. Era louco nosso caso de amor, eu te deixava louca com meu gênio ruim, que você, não sei porque, atribuía à minha família paterna.
Lembro de sua voz emocionada a me dizer que nasci em um dia das mães, de como sempre fui inteligente, atrevida e geniosa, de como fui precoce em tudo, inclusive na necessidade de levar palmadas.
Foram tantos nossos perrengues, eu visionária, querendo voar sozinha. Você, interiorana, conservadora, mãe à moda antiga, me querendo sob suas asas. Por tantas vezes, pareceu que falávamos línguas completamente diferentes. Fico feliz que tenhas vivido pra ver que o caminho que escolhi me levou onde eu queria, que ao contrário dos teus medos, não me feri com gravidade nem sofri fraturas irremediáveis. Fico feliz também, por ter te falado do meu amor, gratidão, respeito, amizade e reconhecimento, por ter te feito saber que fostes a melhor mãe que eu poderia ter, que me fez a mulher que sou, me ensinou valores, uma mãe que, admito, nunca terei capacidade de ser.