segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Mais ou menos uma fábula



Assim não é possível, todo dia isso. Será que ele não toma jeito? Resmungava Leon a caminho da casa de Rafael. Olhava para o relógio ansioso e aumentava o passo, odiava chegar atrasado, era pontual como um relógio suíço. Já o Rafael, seu melhor amigo, era totalmente o oposto. O que tinha Leon de responsável, preocupado em cumprir todas as obrigações e ser politicamente correto, tinha Rafael de descontraído, relaxado e bom vivant.

Leon para em frente a casinha amarela de portas e janelas vermelhas e bate uma, duas, três vezes. Nada. Põe se a esmurrar a porta com mais vigor:

- Rafaeeeeeeeeeeeeel, Rafaeeeeeeeeeeeeeeeel.

Ouve passos lentos, parece ouvir os bocejos do amigo, vindo com toda aquela paciência do mundo. A porta se abre e Rafael aparece esfregando os olhos e ainda enfiando umas coisas na mochila.

- O Que foi Leon? A floresta está pegando fogo?

- O que foi? Você me pergunta o que foi? Já estamos completamente atrasados e você ainda nem acordou direito! Aposto como ficou a noite inteira tocando esse bendito violão não foi?

- Taí, já pensou em abrir um negócio de clarividência? Adivinhou!

- Vê se para de palhaçada e vamos embora.

Finalmente Leon conseguiu arrastar Rafael para fora de casa, desde o primário era aquela mesma historia, o Leon todos os dias, precisava passar na casa do amigo para chamá-lo para aula. Talvez fosse a hora de levarem um papo sério, afinal já não eram mais crianças. Rafael ia chutando pedrinhas distraidamente enquanto Leon olhava para os sapatos, sem saber como puxar aquele assunto. Rafael resolve começar uma conversa:

- Que foi Leo? Está mais carrancudo que sempre.

-Sabe, acho que a gente precisa levar um papo...

- Ihhh! Já vi que lá vem papo cabeça.

- É sobre isso que quero falar, cara, você não leva nada a sério, não se importa com nada, parece que vive no mundo da lua, não ta nem aí para a escola. Todo ano faz um monte de recuperações e nem sei como consegue passar de ano. Já está na hora de você começar pensar no futuro, sobre qual faculdade vai fazer. Você fica aí ligado nessa historia de arte, de música, isso não dá futuro cara.

Rafael ouvia meio que distraído, não era a primeira vez que ouvia aquele discurso, todos os professores já haviam lhe dito aquilo desde a primeira série.

- Sabe Leon, vocês formigas são muito estressadas. Saca só isso.

Leon tirou o violão da mochila e começou cantarolar:

Don’t worry, about a thing, cause every litlle things, gonna be all right.

- E vocês, cigarras, não levam nada a sério. Bom, pelo menos inglês você está estudando.

Os dois não puderam evitar a gargalhada. Nunca houve entre duas pessoas tantas diferenças e uma amizade tão sincera.

Assim passou o tempo e os dois seguiam com seus projetos. Leon ansioso, preocupado com o futuro, os estudos, a desejada carreira de advogado e Rafael, cada vez mais no mundo da lua, agarrado ao seu inseparável violão e sua vasta coleção musical.

Chegou o ultimo ano do ensino médio, toda a escola estava em alvoroço, alunos preocupados com as provas finais, a formatura, o vestibular. Todos, exceto um, Rafael, que só se preocupava em dar os últimos toques na banda para a apresentação da formatura.

Ao contrario do amigo, Leon estava em vias de enlouquecer, estudava oito horas por dias e ia prestar vestibular em três faculdades. Vivia zanzando para lá e para cá com pilhas de livros e nunca tinha tempo pra nada. Até as conversas com Rafael tornaram-se mais espaçadas. Mas os amigos se compreendiam, um entendia e respeitava os desejos do outro e, mesmo sendo tão contrários, apoiavam-se sem reservas.

Leon, como já era esperado, foi aprovado na melhor faculdade de direito da região. Ninguém duvidava que ele seria o melhor. A família, orgulhosíssima, fez questão de preparar uma baita festa para todos os seus amigos, nunca se viu uma despedida tão animada. Várias mães entusiasmadas comentavam o bom desempenho de seus filhos e faziam as previsões mais mirabolantes, que só as mães podem conceber para o futuro de um filho.

Lá pelas tantas, atrasado como sempre, chega Rafael com seu surrado violão embaixo do braço. A mãe de Leon torce o nariz, nuca foi com a cara daquele menino aluado e cava graças aos céus por ele não ter corrompido seu promissor filhinho.

Rafael canta uma musica que compôs para o amigo. Se despedem com a certeza de que não voltariam a se ver tão cedo e que, talvez nunca mais seriam tão próximos.

Os anos se passaram, a comunicação entre os amigos foi diminuindo até quase deixar de existir. Leon estava cada dia mais ocupado, trabalhando e estudando mais e mais. Quase não lhe sobrava tempo de enviar um simples e mail. A vida na cidade grande, os compromisso de trabalho lhe consumiam todo o tempo mas, ele estava feliz, afinal este é o destino de todas as formigas.

Certo dia, após chegar de mais uma exaustiva jornada de trabalho, Leon se levanta contrariado para atender ao interfone. A voz do porteiro soa estridente ao seu ouvido:

- Doutor, tem uma pessoa aqui que diz ser seu amigo, sei não, mas me parece difícil que isso seja verdade...

- Qual é o nome da pessoa?

- Ele diz que é Rafael.

- Rafael? Pode mandar subir.

- Tem certeza? É que ele me parece meio, meio...

- Meio vagabundo?

- Sim senhor.

Leon sorriu ao lembrar do jeito despojado, meio hippie do amigo, pelo jeito ele não havia mudado nada, muito menos tomado um rumo na vida.

- Pode mandar subir.

Os amigos se abraçaram com entusiasmo, mesmo estando Rafael encharcado pela chuva que desabava lá fora.

Leon olhou para a pouca bagagem e o velho violão do amigo encostado na parede.

- Está de passagem, ou pretende ficar?

- Nada, volto amanhã, desculpe vir sem avisar, eu não gosto de hotéis.

- Pode ficar o tempo que precisar, só não garanto te fazer companhia, tenho trabalhado muito.

- Percebe-se, baita casarão heim mano? Tem placas para eu não me perder?

Caíram na gargalhada, como nos velhos tempos.

- Você não muda Rafa, sempre palhaço.

- Mas todos se divertiam com minhas palhaçadas não era?

- Cara, até hoje lembro daquele dia que você colocou uma perereca na bolsa da professora.

- É, eu fui expulso por uma semana...

- Mas valeu por cada risada.

- Bom, se você não se importa, preciso de uma roupa seca, não posso pegar um resfriado e destruir minha bela voz.

Leon indicou o caminho e foi ver o que tinha pra comer, raramente fazia uma refeição em casa, ganhava tempo comendo no trabalho. Enquanto improvisava um jantar, não pôde deixar de se preocupar com o amigo, pela sua aparência, ele continuava da mesma maneira, levando a mesma vida de anos atrás, pensou se não seria a hora de terem uma nova conversa. Respeitava a postura do amigo, mas temia pelo seu futuro, Rafa não era mais um garoto, agora era um homem feito.

Durante o jantar quase não falaram, Rafael como sempre, puxou conversa:

- Puxa Leo, será que você não perde essa cara emburrada?

- É que eu queria te falar umas coisas.

- Papo cabeça, adivinhei?

- Rafa, é sério. Olha pra você cara, não mudou nada.

- Ué, você também não mudou nada e eu não estou preocupado por isso.

- É diferente cara. Você precisa se preocupar com seu futuro, não é mais nenhum garoto.

Rafael apenas balançou a cabeça distraidamente, como fizera todas as vezes que o amigo tentou aquela conversa.

- Bom, o que você veio fazer por aqui, garanto que não foi provar minha comida.

- Que é muito ruim por sinal.

- Isso eu admito que você sempre fez bem Rafa, um cozinheiro de mão cheia. Tai, deveria abrir um restaurante.

- Eu heim! Respondendo a sua pergunta, eu tive que vir aqui ver um lance muito sério, é que uma gravadora me contratou meu amigo, acabo de assinar o contrato. Eles querem gravar todas as minhas composições, isso deve resolver suas preocupações a respeito do meu futuro, tenho emprego por pelo menos cinco anos e acabo de receber uma bolada pela assinatura do contrato.

- Nossa cara, que noticia fantástica. Quem diria que esse violão velho ia ser sua mina de ouro heim!

- Pois é, agora vou voltar pra casa e abrir uma escola de artes. Existem coisas que não se aprendem apenas em uma faculdade e todos os caminhos podem levar ao sucesso, desde que se faça o que gosta e que se proponha a fazer com vontade.

- Confesso que estou impressionado. Só me resta parabenizá-lo e dizer que me sinto aliviado, já estava convicto de que ia ter que te sustentar e, você em troca, todos os dias me pagaria com uma musica.

- Agora você é quem vai pagar para ouvir minhas músicas. Por falar em musica, que tal relembrarmos os velhos tempos?

Rafael levantou-se, apanhou seu surrado violão e começou cantar baixinho:

Don’t worry, about a thing, cause every little things, gona be all right…

Passaram o resto da noite relembrando os feitos da infância e da adolescência, felizes por sempre terem tido certeza dos seus objetivos e por tê-los alcançado. Naquela noite Leon não se preocupou em dormir cedo e Rafael no outro dia, foi quem precisou acordá-lo para ir trabalhar.





Um comentário:

  1. Adorei a releitura que fizeste! sou totalmente a favor das cigarras e como diria o mestre Millor Fernandes 'o trabalho danifica o homem'!

    Um grande abraço!

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