sexta-feira, 23 de julho de 2010

Eu, livro e capa


As pessoas têm memória curta, fato! Às vésperas da minha colação de grau, já emendando uma pós graduação, começa a tarefa indigesta de convidar algumas pessoas para a cerimônia. Nesse dia tive noção de como  elas têm memória fraca ou então, muita cara de pau!
Quando eu era criança, os vizinhos e parentes tinham uma opinião quase unânime sobre mim: isso não vai ser coisa preste! Ok, admito que era meio moleque (no masculino mesmo), chegando ao cumulo de que, algumas pessoas nem sabiam que eu era menina, pois escondia meus vestidos em lugar super secreto e vestia as roupas reserva que meu irmão levava por baixo das dele, e assim gastei a infância, em brincadeiras de moleque, ou bem baianamente dizendo, solta de corda e canga, perdida na buraqueira.
Foram incontáveis surras e castigos inenarráveis até que minha mãe me “entregasse nas mãos de Deus” e se resignasse a esperar pelo “pior”, baita contra-senso né?
As pessoas estavam sempre tão ocupadas em me fazer prognósticos funestos, que ninguém percebeu que aprendi ler “de ouvido” aos cinco anos de idade, minha mãe era faxineira em uma escola particular, como não tinha onde me deixar eu ia junto, assim, ouvindo as aulas, sentada no pátio ao lado da sala de aula, aprendi ler e escrever, em um tempo em que, aos cinco anos, as crianças estavam começando na escola. Prestavam mais atenção à minha próxima aprontação, e como eu aprontava. Mas que fique claro, apenas gostava de brincar, correr, nadar, talvez mais que outras crianças, sempre fui superlativa.
Passou-se o tempo e a coisa “piorava”, durante a adolescência, veio o quarteto maravilha, eu, Geisi, Poli e Kelly, fim de semana sim outro sim, estávamos nós onde houvesse uma lata batendo. Os prognósticos pioraram, e muito. Nossa alegria, vivacidade e falta de preocupação com a opinião alheia, incomodava muita gente. Vieram os olhares tortos, as opiniões divergiam em: “isso não vai acabar bem” e “certamente isso não vai acabar bem”. Bom, como sempre fomos do contra, hoje Poli é mestranda em Sistemas Elétricos pela UFBA; Geisi cursa medicina na Universidade de Havana, Cuba; Kelly, enfermagem na UEFS e eu, bem, isso vocês já sabem.
Não sou de me alegrar com as tragédias alheias nem digo isso com jubilo, mas a metade das “santinhas” que tanto nos esfregaram na cara, hoje são mães solteiras, abandonaram a escola e vivem em subempregos.
Nessa sociedade, em que se julga o livro pela capa, nunca fui indício de boa leitura, talvez por não ter sido “igualzinha a todas as meninas da minha idade”, por nunca ter rezado pelas cartilhas, por nunca ter seguido os padrões. Fui considerada rebelde sem causa, apenas porque o desejo de liberdade, de pé descalço no chão, de banho de chuva, falava mais alto que o resto e me arrastava pra gandaia, talvez por rir alto, por brigar, defender minhas opiniões, por falar a verdade (ah, quantos problemas ganhei, quantas surras levei, por falar a verdade). Fui uma “rebelde’ que nunca tomou um porre, não usou drogas nem nunca beijou um desconhecido numa balada.
Autenticidade assusta as pessoas, a falta de máscaras, a cara limpa é que causa desconfiança.
Voltando à tarefa inglória da distribuição dos convites, que fiz em respeito à memória de minha mãe, que ficaria muito triste se eu não o fizesse, cumpro o velho adágio “por causa dos santos, se adoram as pedras”. Sou recebida com sorrisos, abraços, congratulações. A mesma pessoa que traçou meu destino sombrio há tantos anos, me olha nos olhos e diz com a maior emoção do mundo, “eu sempre soube que você teria muito sucesso em sua vida”.
Respondo incontinenti, “eu também, mesmo quando a senhora me dizia o contrário”.

2 comentários:

  1. Texto maravilhoso, cheio de verdades. Nunca fui um moleque, mas sempre vi (e ainda vejo) o mundo de um jeito diferente da maioria e isso assusta.

    "Autenticidade assusta as pessoas, a falta de máscaras, a cara limpa é que causa desconfiança"

    Amei essa frase. Na hora me lembrei de uma música da Legião Urbana que diz mais ou menos assim "E meus amigos parecem ter medo de quem fala o que sentiu, de quem pensa diferente. Nos querem todos iguais. Assim é bem mais fácil nos controlar e mentir e matar"

    Ser autêntico tem um preço, mas o sabor da vitória tem um toque a mais.

    Beijos.

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  2. E viva nós Garcia Léon, os loucos, os incompreendidos, os genios, os ébrios. Viva nós, que aprendemos a cada dia o sabor de viver nossa vida.

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