sexta-feira, 2 de julho de 2010

Fuga para a chuva


A menina caiçara, que ainda vive em mim, às vezes foge do porão e vai fazer traquinagem. Solta das amarras, convenções, podes não podes, ela sai assim, de chinela e saia de chita, de cabelo assanhado, boca cheia de um sorriso tão genuíno, que por não caber por dentro, se derrama pelo caminho.

Ela, menina há muito tempo aprisionada, calçada, vestida, envernizada. Ela que hoje já não para ver o sol, que já não se demora em brinquedos de moleques a beira do rio. Já não salta mais cancelas, não se mete mais com meninos ciganos a jogar dados viciados e perder bolas de gude de estimação. Ela que há muito, já não chora de medo de causos de assombração.

A menina ribeirinha, que comia juá no pé, que jogava pião, roubava peixe na rede alheia e tomava banho de rio em dia de chuva (a água fica tão morninha), que tocava campanhia e corria, que vestia roupa do irmão pra melhor aprontar das suas sem estragar o vestidinho de menina (este ficava muito bem guardado em esconderijo secreto até a hora de voltar pra casa), que tantas vezes deixou a mãe alucinada, a imaginar seqüestros, roubo de órgãos, atropelamentos, afogamentos e tantas outras desventuras que só as mães conseguem arquitetar, a menina que apanhava de cinta para aprender ficar em casa, e que no dia seguinte, esquecidas a dor da surra e as lagrimas, ia-se de novo mundo afora, um mundinho bem pequeno, é verdade, tanto que seus pés ligeiros e suas pernas esguias davam conta de correr em um só dia.

Ah, essa menina, que nunca foi flor que se cheirasse...

Hoje vive no porão, um lugar úmido e escuro, com cheiro de guardado e saudade. Ainda que alimentada, com esforço resguardada, lhe falta um tantão assim de liberdade, de gosto de pé descalço no chão quente de cascalho, do cheiro de melancia na cheia do rio e da sensação de barro molhado nas mãos. Ainda que amarrada, pelas convenções, contida, de vez em quando ela apronta, ludibria e, sabe-se lá como, saí por aí assim, descalça, vestida de chita, solta de corda e canga e vai tomar banho de chuva.

2 comentários:

  1. Toda essa poesia em prosa, essa nostalgia que envolve, essa menina caiçara... me enche os olhos e aguça meus sentidos.

    Bjos.

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  2. Olá, tudo bem? Vi seu comentário no meu blog, e comentei com meu pai (William). Ele me contou que vocês são amigos e disse também que você escreve muito. Eu, curiosa, vim dar uma espiada, e adorei! Parabéns, seus textos são envolventes e muitíssimo bem escritos.
    Beijão, e prazer.

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