quarta-feira, 30 de junho de 2010

Quando crescer, quero ser estelionatária!

“Só uso as que eu conheço[palavras], as desconhecidas são perigosas e potencialmente traiçoeiras.” Luis Fernando Veríssimo

Sábias, aliás, sapientíssimas palavras do Veríssimo, essa frase, retirada de “O gigolô das palavras”, texto que, diga-se de passagem, é um dos meus favoritos,  ilustra muito bem esse post, alçado do limbo de minha controversa infância de caiçara, ribeirinha e muito mais interiorana, onde as palavras eram poucas e, quase sempre mal empregadas.
Conversando com um amigo sobre palavras preferidas, confessei que a minha é “estelionatário”. Desde criança tenho fascínio por ela, aliás, foi nessa época que decidi com toda convicção dos meus oito anos, que queria seria estelionatária quando crescesse. Tudo começou quando assistíamos em casa de um vizinho economicamente favorecido ao Jornal Nacional (é, não tínhamos televisão em casa, nem em lugar algum, vale a ressalva, e a isso devo a meia duzia de neurônios a mais em minha cabeçinha meio oca) e a notícia era de que um fulano de tal foi descoberto praticando o tal estelionato. Lembro-me muito bem de ter ficado bestificada com a casa enorme, os vários carros que ele possuía (onde eu morava só havia um, o chevette vermelho de tia, por consideração, Florzinha) e a aparência de galã do fulano. Tudo isso me levou à seguinte premissa: uma palavra tão linda e um senhor tão distinto, isso só pode ser coisa boa e de gente rica!
De posse dessa informação, só me faltava a comprovação empírica mais garantida de todos os tempos:
_Mainha, o que é e-s-t-e-l-i-o-n-a-t-á-r-i-o (asim mesmo, soletradinho)?
_Shhhhhhhhhhhh, isso é coisa de gente grande.
Bom estava ali o que eu precisava: palavra bonita, coisa de rico e de gente grande. Bingo, quando crescesse, tão certo como dois mais dois são cinco, eu seria uma grande e importante e estelionatária.
A partir dali foi assim, toda vez que vinha a pergunta mais velha que a morte: “o que você vai ser quando crescer?” A resposta estava pronta. Os adultos apenas riam, um riso escabriado e de cantinho de boca, ninguém sabia o que significava, e gente grande tem pavor de saber menos que uma criança, assim a ignorância alheia acalentava meu sonho e projeto de vida.
Infelizmente (?) meu mundo ruiu uns meses depois, quando a Pró Cleusa Wanda nos pediu para escrever a didatisíssima e inovadora redação: “o que vou ser quando crescer”. Depois de ler a minha, ela me interpela com toda pedagogia e psicologia infantil do mundo:
_ Voçê é louca menina? Onde já se viu isso? E-s-t-e-l-i-o-n-a-t-á-r-i-o (não sei por que as pessoas até hoje dizem essa palavra assim, soletradinha) é ladrão.
Fiquei inconsolável, como uma palavra tão bonita podia significar uma coisa tão feia? E outras tão feias significar coisas tão bonitas? oras! Quanta injustiça gramatical. Nunca me recuperei direito desse trauma. Forçada pelas circunstancias, desisti me tornar estelionatária, continuo economicamente desfavorecida e com esse nó etimológico até hoje atravessado na garganta.


 
Veja em “Famigerado”, de Guimarães Rosa, outra inquietações gramaticais.

4 comentários:

  1. Muito muito bom, adorei!

    Na faculdade eu tinha um professor que sempre dizia para tomarmos muito cuidado na hora de redigir um anúncio, pois as palavras são dotadas de certa índole, palavras que tem siginificado positivo mas não o são ou não parecem ser quando escritas ou faladas e vice-versa. Elas tem algo como um significado além do significado.

    Uma palavra que acho linda é "apóstata" que no entando signica traidor! Rsrsrsr

    Bjos.

    ResponderExcluir
  2. Fia, eu ri! kkkkkkkkkkkkkkk adorei o texto, me lembrou o estilo irônico-cômico do Veríssimo... e ficou muito bom sem ser cópia. Exagerado e muito divertido. Aff adorei.Espero não precisar pegar fila na tarde de autógrafos do seu livro. ;)

    ResponderExcluir
  3. Uia! tarde de autografos, kkkkkkkk. coisa seculo XX amiga, haverá sim, uma balada de autografos.

    ResponderExcluir
  4. Rodrigo, "apóstata" é linda mesmo. mas, estelionataria apostata não dá ne colega?

    ResponderExcluir