Ana para diante da porta, confere o numero, alisa a roupa no corpo, ajeita os cabelos, respira fundo. Aperta o botão da campanhia. Espera, aperta novamente, no exato momento em que a porta se abre. O homem a olha de baixo para cima, mede cada centímetro do seu corpo, um esboço de riso risca sua face quando encontra a de Ana.
_Parece que dessa vez acertaram! Vamos, vai ficar parada aí?
O apartamento estava imundo, um cheiro nauseante de cigarros e bebida impregnava o ambiente, roupas jogada, garrafas vazias, revistas pornográficas compunham a decoração do lugar. O morador estava visivelmente bêbado ou drogado ou os dois. A voz era quase um grunhido e olhar guloso parecia grudado em Ana. Ele fedia tanto quanto o apartamento.
_Posso ir ao banheiro? Perguntou fingindo indiferença. Ela precisava agir com profissionalismo. Não existiam clientes bons ou ruins, existiam apenas clientes.
_Se quiser... Mas só começo contar o tempo quando você voltar.
Ela deu de ombros e seguiu até o cômodo que ele indicara, tão imundo quanto o resto. Esfregou o espelho com as costas das mãos e viu seu reflexo embaçado. O rosto exageradamente maquiado, conselho de Madame Amélie, “os homens não pagam querida, para ver o mesmo que têm em casa”. A farta cabeleira crespa emoldurava o rosto de traços fortes, o nariz atrevido, os olhos cor de mel que se destacavam no negro rosto, olhos que lhe renderam o nome de batismo, Ana Luz.
Abre a pequena bolsa, retira um recipiente, limpa como pode uma parte do lavabo e prepara uma carreira de pó branco, fecha os olhos e aspira, a carreira desaparece por sua narina. Não se considera viciada, este é um recurso utilizado somente para os clientes que não se pode enfrentar de “cara limpa”. Olha-se mais uma vez, quase que instantaneamente os olhos se tornam opacos, as pupilas enormes. Não gosta daquela sensação de cair em um buraco negro. Apóia-se na borda do lavabo. Teletransporta-se. Aquelas lembranças sempre voltam quando está entrando no transe causado pela droga. Deixa-se levar, sabe que não adianta resistir. Ouve a voz da mãe, tão longe, sofrida. Ainda criança, a mãe tomando-lhe pela mão, dizendo-lhe para tomar aquela bebida horrível, insistindo por mais um gole, sentia arder a garganta e secar a boca. “Vamos, Ana, só mais um pouco”. O gosto era horrível, sentia queimar as entranhas, logo após, um torpor a lhe tomar o corpo, a cabeça girando, o chão fugindo. A voz de sua mãe agora era confusa, pedaços de frases, conseguia entender apenas uma parte que ela repetia sem parar: “você precisa ficar quieta” e “faça o que ele mandar”.
De repente era conduzida ao quartinho da mãe, havia alguém lá, os olhos embaçados não lhe permitiam distinguir. Por que suas pernas tão fora de controle e não lhe obedeciam? Força mais um pouco a visão, ele era tão familiar... Mas o cheiro, ah! Aquele cheiro conhecia.
_Benção, meu padrinho.
Balbucia com a voz enrolada. Ele a toma pela mão, a mãe sai. Estaria chorando? Está tudo tão confuso. “Faça o que ele mandar, Ana”, ouve mais uma vez.
Sentia-se ainda mais confusa, por que ele arrancava sua roupa? As mãos infantis tentavam contê-lo, em vão, ele era tão forte. Debatia-se, tentava gritar, a voz não saía, o corpo mole não obedecia. Ele beijava-lhe a boca, ela sentia enojada, o cheiro do fumo de mascar, quantas vezes ela o preparara. Viu-se atirada com fúria sobre a cama de varas, aquele peso sobre seu corpo, as pernas separadas à força e a dor lancinante que parecia rasgar-lhe em duas partes. Não lembra ao certo quanto tempo aquilo durou, pareceu “apagar” por alguns momentos. Novamente a voz da mãe. Estavam agora sozinhas na choupana miserável, a mãe insistia para se agachasse na bacia de flandres cheia de uma mistura de água e ervas. “Tinha que ser Ana, não fosse ele seria outro, tinha que ser. Não havia jeito, não temos pra onde ir, tinha que ser”, a mãe repetia mais para si mesma que para a filha. Ana voltava a sentir seu corpo, a voz da mãe era clara agora, sentia uma dor terrível entre as pernas, havia sangue.
Dormiu mal, ouvia o choro da mãe, a cabeça ainda girava, os sonhos foram confusos, “tinha que ser, tinha que ser”, a frase martelava em sua cabeça.
Acordou tarde, deu por falta da mãe, precisava de ajuda, sentiu muitas dores ao urinar, precisava da mãe, devia estar doente. Foi encontrá-la pendurada no velho cajueiro, um lençol amarrado ao pescoço. Morta.
_Vem ou não vem?
A voz do outro lado da porta a trouxe de volta. Olhou-se mais uma vez, conferiu os preservativos na bolsa. Saiu do banheiro.
Novamente sentiria aquele peso sobre seu corpo, aquele cheiro de fumo, aquela invasão entre as pernas. Agora ela sabia o que estava acontecendo e, mais uma vez, lembraria da voz da mãe e repetiria para si mesma, como havia feito durante todos aqueles anos: “Tinha que ser, tinha que ser”.
Sempre me surpreendendo! Simplesmente adorei! Texto super bem conduzido, assisti toda a cena em widescreen! Você tem qualidades de roteirista viu!
ResponderExcluirBjos!
Concordo com o comentário acima! :D
ResponderExcluirComecei a ler e não consegui parar até terminar, mesmo estando no trabalho e não tendo muito tempo pra isso...
Faz meses que não passo por aki.. =/ Mas vou ver se volto mais vezes pra ler mais textos como este. Vou dar uma olhada nos posts anteriores tbm. (assim que tiver tempo).
Continue escrevendo, garota! *-*
Passa lá no meu blog uma hora dessas tbm.
Abraço e até mais!
aiiiiii que conto excelente!
ResponderExcluir#morri
Adoro tragédias, adoro durezas, adoro recortes da vida real...!
Muito bem construído, envolvente, forte.
Gostei da escolha de temas, a violência sexual sempre me arrepia e o ambiente criado, a forma de narrar tudo isso contribuiu...
Parabéns meeeeeesmo!
Vi, adorei! Parabéns!
ResponderExcluirEstava assistindo um documentário ontem que era isso mesmo. Revi todas as cenas lendo seu texto. Mto bom.