terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Destinos


A mulher estava ali fazia certo tempo. Sentada, imóvel, introspecta, mergulhada em seus pensamentos, sabe-se lá Deus (ou o diabo, que é quem mais entende de pensamento de mulher) quais.

Todos os passantes espichavam o olhar para aquela figura no mínimo, exótica, ali parada, como se fosse uma palmeira imperial. Digo palmeira, pois era bem o que ela me lembrava. Nunca tinha visto uma mulher tão bonita, tão altiva. Perturbadoramente bonita e quieta. Olhava para tudo, mas era como se não olhasse pra nada, era um olhar penetrante e impenetrável.

Depois de horas de angustiante quietude resolvo me aproximar, talvez ela não falasse português ou nenhum outro idioma, afinal, não é de estranhar? Uma mulher calada por tanto tempo?

Meio cabreiro me aproximo:

- Posso ajudá-la, senhora?

- Senhorita.

- Como queira.

De repente ela me olha com a expressão mais esquisita que já vi na vida, a mulher parecia querer me atravessar e ler meus pensamentos.

- O senhor acredita em destino?

- Como?

- Essa coisa de predestinação, nada é por acaso, tudo está escrito, enfim.

- Que diacho de pergunta mais estranha, aliás, toda essa historia é estranha. Primeiro a senhora, digo, senhorita, fica aí parada, caladona, com cara daquele bicho do Egito que devorava os viajantes...

- Esfinge.

- O quê?

- Esfinge, é o nome do ser que devorava os viajantes que não decifrassem seus enigmas.

- Ah! Então, primeiro a senhorita fica aí com cara de quem vai devorar o primeiro que atravesse seu caminho, depois me vem com uma pergunta estranha dessa, assim à queima roupa.

- Mas o senhor nunca se preocupou em saber se a gente já nasce com um destino todo prontinho, só esperando pela gente pra poder acontecer?

- Eu acho muito besta isso de gente vir ao mundo com o destino escrito na testa.

- Nas mãos.

- Como?

- Nas mãos, o destino da pessoa está escrito nas mãos.

- Vixe, agora que complicou. Então quem nasce sem as mãos, nasce também sem destino? Era melhor que fosse na testa, pelo menos nunca vi ninguém sem testa, já sem mãos...

- Engraçado, nunca tinha pensado nisso. Mas o senhor não acha curioso o fato de eu estar aqui há tanto tempo e só o senhor ter vindo falar comigo?

- Peraê, eu vim porque quis.

- Mas o que fez o senhor querer?

Pensei em lhe dizer a verdade, que foi aquele porte de palmeira, o corpo de parar de comboio de caminhão, os seios, as coxas, mas nessas horas é melhor demonstrar cavalheirismo.

- Eu pensei que estivesse perdida, sei lá, ficou aí à toa.

- Nada disso, foi coisa do destino, o senhor não vê?

Desisti de argumentar e confesso que já estava meio mexido com aquele papo.

A moça respirou fundo e continuou:

- Olhe, hoje aconteceu algo muito incomum, eu me atrasei e perdi o ônibus que tomo todos os dias, então resolvi tomar um outro que me deixaria perto do trabalho, me confundi, perdi o ponto e acabei vindo parar aqui.

- Pois bem, até aí nada de estranho. Quem nunca tomou o ônibus errado? Era só voltar e continuar seu caminho.

- Pois é, seria o óbvio, mas então eu me perguntei como seria se eu não chegasse ao trabalho hoje, na mesma hora de todos os dias depois de dez anos.

- Minha senhora, perdão, senhorita, no mínimo a senhorita receberá um baita esculacho do seu patrão.

- O senhor não está entendendo, tudo isso me fez pensar que o destino, o meu destino, ia dar uma reviravolta. Não vê? Não estamos aqui, nesse momento, conversando por acaso. O senhor estava no meu destino e eu no seu.

Confesso que me senti bem lisonjeado, afinal nunca havia estado no destino de uma mulher daquelas.

- Agora já sei o que me estava reservado pelo destino, pelo menos para hoje. Bem aí vem outro ônibus.

- Espera, então é assim? Eu entro no seu destino por uma porta e a senhorita sai por outra? Ou melhor, entra pela porta de um ônibus?

- Então, assim é o destino. Ele já vem pronto, mas a gente nunca sabe o que vai acontecer. O que a gente chama de vida é apenas o desenrolar do destino, a sucessão de seus acontecimentos.

- Se é assim, fica sendo. Quem sou eu pra contrariar né? Em todo caso, foi um prazer senhorita...

- Rafaela.

- Paulo, no seu destino e ao seu dispor.

Aqueles acontecimentos ficaram a martelar em minha cabeça, mas logo depois a mesa de bilhar roubou minha concentração e foi ali que me abordou esbaforido o moleque que entrega jornais com uma noticia ainda mais quente que as dos periódicos matutinos. Logo ali, na rua de baixo, um ônibus despencou da ladeira, bateu, capotou , levou tudo que encontrou pela frente, um miserê. Porém, o mais impressionante é que só houve uma vitima fatal, uma mulher, identificada como Rafaela da Silva.

Fiquei atônito, coitada, uma mulher tão bonita. Mas que destino!

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Mais ou menos uma fábula



Assim não é possível, todo dia isso. Será que ele não toma jeito? Resmungava Leon a caminho da casa de Rafael. Olhava para o relógio ansioso e aumentava o passo, odiava chegar atrasado, era pontual como um relógio suíço. Já o Rafael, seu melhor amigo, era totalmente o oposto. O que tinha Leon de responsável, preocupado em cumprir todas as obrigações e ser politicamente correto, tinha Rafael de descontraído, relaxado e bom vivant.

Leon para em frente a casinha amarela de portas e janelas vermelhas e bate uma, duas, três vezes. Nada. Põe se a esmurrar a porta com mais vigor:

- Rafaeeeeeeeeeeeeel, Rafaeeeeeeeeeeeeeeeel.

Ouve passos lentos, parece ouvir os bocejos do amigo, vindo com toda aquela paciência do mundo. A porta se abre e Rafael aparece esfregando os olhos e ainda enfiando umas coisas na mochila.

- O Que foi Leon? A floresta está pegando fogo?

- O que foi? Você me pergunta o que foi? Já estamos completamente atrasados e você ainda nem acordou direito! Aposto como ficou a noite inteira tocando esse bendito violão não foi?

- Taí, já pensou em abrir um negócio de clarividência? Adivinhou!

- Vê se para de palhaçada e vamos embora.

Finalmente Leon conseguiu arrastar Rafael para fora de casa, desde o primário era aquela mesma historia, o Leon todos os dias, precisava passar na casa do amigo para chamá-lo para aula. Talvez fosse a hora de levarem um papo sério, afinal já não eram mais crianças. Rafael ia chutando pedrinhas distraidamente enquanto Leon olhava para os sapatos, sem saber como puxar aquele assunto. Rafael resolve começar uma conversa:

- Que foi Leo? Está mais carrancudo que sempre.

-Sabe, acho que a gente precisa levar um papo...

- Ihhh! Já vi que lá vem papo cabeça.

- É sobre isso que quero falar, cara, você não leva nada a sério, não se importa com nada, parece que vive no mundo da lua, não ta nem aí para a escola. Todo ano faz um monte de recuperações e nem sei como consegue passar de ano. Já está na hora de você começar pensar no futuro, sobre qual faculdade vai fazer. Você fica aí ligado nessa historia de arte, de música, isso não dá futuro cara.

Rafael ouvia meio que distraído, não era a primeira vez que ouvia aquele discurso, todos os professores já haviam lhe dito aquilo desde a primeira série.

- Sabe Leon, vocês formigas são muito estressadas. Saca só isso.

Leon tirou o violão da mochila e começou cantarolar:

Don’t worry, about a thing, cause every litlle things, gonna be all right.

- E vocês, cigarras, não levam nada a sério. Bom, pelo menos inglês você está estudando.

Os dois não puderam evitar a gargalhada. Nunca houve entre duas pessoas tantas diferenças e uma amizade tão sincera.

Assim passou o tempo e os dois seguiam com seus projetos. Leon ansioso, preocupado com o futuro, os estudos, a desejada carreira de advogado e Rafael, cada vez mais no mundo da lua, agarrado ao seu inseparável violão e sua vasta coleção musical.

Chegou o ultimo ano do ensino médio, toda a escola estava em alvoroço, alunos preocupados com as provas finais, a formatura, o vestibular. Todos, exceto um, Rafael, que só se preocupava em dar os últimos toques na banda para a apresentação da formatura.

Ao contrario do amigo, Leon estava em vias de enlouquecer, estudava oito horas por dias e ia prestar vestibular em três faculdades. Vivia zanzando para lá e para cá com pilhas de livros e nunca tinha tempo pra nada. Até as conversas com Rafael tornaram-se mais espaçadas. Mas os amigos se compreendiam, um entendia e respeitava os desejos do outro e, mesmo sendo tão contrários, apoiavam-se sem reservas.

Leon, como já era esperado, foi aprovado na melhor faculdade de direito da região. Ninguém duvidava que ele seria o melhor. A família, orgulhosíssima, fez questão de preparar uma baita festa para todos os seus amigos, nunca se viu uma despedida tão animada. Várias mães entusiasmadas comentavam o bom desempenho de seus filhos e faziam as previsões mais mirabolantes, que só as mães podem conceber para o futuro de um filho.

Lá pelas tantas, atrasado como sempre, chega Rafael com seu surrado violão embaixo do braço. A mãe de Leon torce o nariz, nuca foi com a cara daquele menino aluado e cava graças aos céus por ele não ter corrompido seu promissor filhinho.

Rafael canta uma musica que compôs para o amigo. Se despedem com a certeza de que não voltariam a se ver tão cedo e que, talvez nunca mais seriam tão próximos.

Os anos se passaram, a comunicação entre os amigos foi diminuindo até quase deixar de existir. Leon estava cada dia mais ocupado, trabalhando e estudando mais e mais. Quase não lhe sobrava tempo de enviar um simples e mail. A vida na cidade grande, os compromisso de trabalho lhe consumiam todo o tempo mas, ele estava feliz, afinal este é o destino de todas as formigas.

Certo dia, após chegar de mais uma exaustiva jornada de trabalho, Leon se levanta contrariado para atender ao interfone. A voz do porteiro soa estridente ao seu ouvido:

- Doutor, tem uma pessoa aqui que diz ser seu amigo, sei não, mas me parece difícil que isso seja verdade...

- Qual é o nome da pessoa?

- Ele diz que é Rafael.

- Rafael? Pode mandar subir.

- Tem certeza? É que ele me parece meio, meio...

- Meio vagabundo?

- Sim senhor.

Leon sorriu ao lembrar do jeito despojado, meio hippie do amigo, pelo jeito ele não havia mudado nada, muito menos tomado um rumo na vida.

- Pode mandar subir.

Os amigos se abraçaram com entusiasmo, mesmo estando Rafael encharcado pela chuva que desabava lá fora.

Leon olhou para a pouca bagagem e o velho violão do amigo encostado na parede.

- Está de passagem, ou pretende ficar?

- Nada, volto amanhã, desculpe vir sem avisar, eu não gosto de hotéis.

- Pode ficar o tempo que precisar, só não garanto te fazer companhia, tenho trabalhado muito.

- Percebe-se, baita casarão heim mano? Tem placas para eu não me perder?

Caíram na gargalhada, como nos velhos tempos.

- Você não muda Rafa, sempre palhaço.

- Mas todos se divertiam com minhas palhaçadas não era?

- Cara, até hoje lembro daquele dia que você colocou uma perereca na bolsa da professora.

- É, eu fui expulso por uma semana...

- Mas valeu por cada risada.

- Bom, se você não se importa, preciso de uma roupa seca, não posso pegar um resfriado e destruir minha bela voz.

Leon indicou o caminho e foi ver o que tinha pra comer, raramente fazia uma refeição em casa, ganhava tempo comendo no trabalho. Enquanto improvisava um jantar, não pôde deixar de se preocupar com o amigo, pela sua aparência, ele continuava da mesma maneira, levando a mesma vida de anos atrás, pensou se não seria a hora de terem uma nova conversa. Respeitava a postura do amigo, mas temia pelo seu futuro, Rafa não era mais um garoto, agora era um homem feito.

Durante o jantar quase não falaram, Rafael como sempre, puxou conversa:

- Puxa Leo, será que você não perde essa cara emburrada?

- É que eu queria te falar umas coisas.

- Papo cabeça, adivinhei?

- Rafa, é sério. Olha pra você cara, não mudou nada.

- Ué, você também não mudou nada e eu não estou preocupado por isso.

- É diferente cara. Você precisa se preocupar com seu futuro, não é mais nenhum garoto.

Rafael apenas balançou a cabeça distraidamente, como fizera todas as vezes que o amigo tentou aquela conversa.

- Bom, o que você veio fazer por aqui, garanto que não foi provar minha comida.

- Que é muito ruim por sinal.

- Isso eu admito que você sempre fez bem Rafa, um cozinheiro de mão cheia. Tai, deveria abrir um restaurante.

- Eu heim! Respondendo a sua pergunta, eu tive que vir aqui ver um lance muito sério, é que uma gravadora me contratou meu amigo, acabo de assinar o contrato. Eles querem gravar todas as minhas composições, isso deve resolver suas preocupações a respeito do meu futuro, tenho emprego por pelo menos cinco anos e acabo de receber uma bolada pela assinatura do contrato.

- Nossa cara, que noticia fantástica. Quem diria que esse violão velho ia ser sua mina de ouro heim!

- Pois é, agora vou voltar pra casa e abrir uma escola de artes. Existem coisas que não se aprendem apenas em uma faculdade e todos os caminhos podem levar ao sucesso, desde que se faça o que gosta e que se proponha a fazer com vontade.

- Confesso que estou impressionado. Só me resta parabenizá-lo e dizer que me sinto aliviado, já estava convicto de que ia ter que te sustentar e, você em troca, todos os dias me pagaria com uma musica.

- Agora você é quem vai pagar para ouvir minhas músicas. Por falar em musica, que tal relembrarmos os velhos tempos?

Rafael levantou-se, apanhou seu surrado violão e começou cantar baixinho:

Don’t worry, about a thing, cause every little things, gona be all right…

Passaram o resto da noite relembrando os feitos da infância e da adolescência, felizes por sempre terem tido certeza dos seus objetivos e por tê-los alcançado. Naquela noite Leon não se preocupou em dormir cedo e Rafael no outro dia, foi quem precisou acordá-lo para ir trabalhar.